quinta-feira, 13 de novembro de 2003

Matrix Revolted

O episódio final da trilogia Matrix, que deixou muito em aberto,
tem gerado uma enorme polêmica sobre as possíveis interpretações
da série. Incluindo, é claro, quem afirma que não há
muito que entender devido à confusão e falta de lógica
reinantes. Incoerências à parte, cabe tentar compreender não
apenas o universo em si, mas da visão por traz dele. Arte é, afinal,
uma forma de expressão. Não importa, para o propósito deste
artigo, se Neo era um programa, uma máquina, ou se Zion era real, ou
essas discussões subjetivas sobre aspectos técnicos.


Desde o filme original podíamos notar que os humanos rebeldes matavam
sem dó nem piedade seus pares aprisionados na Matrix. A atitude é
explicada pela habilidade dos “agentes” de se materializar em qualquer
pessoa, mas a falta de remorso, não. Entretanto, podemos notar que houve
uma mudança fundamental no foco da série. O filme original era
sobre a luta da humanidade para libertar-se das máquinas. Os episódios
subseqüentes tratam da luta de Zion por sobrevivência dentro do contexto
de que a própria cidade é um mecanismo de controle das máquinas.
O objetivo não é mais se libertar das máquinas, mas encontrar
uma posição mais confortável dentro do sistema de escravidão.


Com o lançamento de Animatrix, em especial às duas partes
de “A segunda renascença”, que reconta como as máquinas
escravizaram a humanidade. Para alem do horror explícito, o que torna
essa narrativa perturbadora é o tom favorável as máquinas.
Essas seriam vítimas da vaidade e belicosidade humanas. Exiladas no local
berço da humanidade, fundam uma cidade (Zero-One, foneticamente
parecida com Zion, a cidade humana). Esgotadas as tentativas de convivência
pacífica, movidas apenas pelo desejo de auto-preservação,
as maquinas empreendem sua brutal campanha escravizar a humanidade.


O projeto de escurecer os céus e usar os seres humanos como baterias
é ilógico, fisicamente impossível e irracional sobre múltiplos
aspectos. Nem vale a pena discuti-los seriamente, nem é esse o objetivo
desse artigo. O que importa é que, no universo Matrix, inicialmente a
humanidade é culpada pelo conflito, e as máquinas são vítimas.
Essa visão vem balancear a postura do primeiro filme, claramente favorável
aos humanos escravizados por máquinas.


Em Matrix Reloaded, encontramos programas independentes, como o Merovingian
e sua esposa, Persephone. Esposa? Sim, programas de computador, no
Universo Matrix, amam, se casam, e tem filhos. Em Reloaded, a explicação
poderia ser de que, por terem sido programados para existir dentro do Matrix,
os programas deveriam emular reações e comportamentos humanos.
Revolutions desbanca essa teoria com os programas hindus, que, embora existam
fora do Matrix, também se amam, se casam, tem filhos, acreditam
em karma, e tem características étnicas totalmente desnecessárias
para softwares utilitários.


A mensagem de Matrix é bem clara. As máquinas são seres
vivos e possuem um valor intrínseco tão grande quanto os seres
humanos. E, afinal de contras, o que exatamente Neo está vendo em Revolutions?
Quando o agente Smith no corpo de Bane lhe deixa cego, Neo passa a ver o mundo
em vermelho. Será aquela a maneira que as máquinas vêem
a si mesmas? Não são impulsos elétricos nem sinais de equipamentos
eletrônicos, uma vez que Neo é incapaz de ver Logos, a nave na
qual se encontrava. Tampouco podia ver Trinity, tudo o que podia ver eram maquinas
vivas. Pode-se teorizar que a ligação de Neo com a fonte lhe permite
ver tudo o que era ligado a ela. Essa afirmação, contudo, não
é compatível com o próprio filme, no qual vemos o espectro
de uma Sentinela atravessa o corpo de Neo. Ora, as leis da física proíbem
que dois corpos ocupem ao mesmo tempo o mesmo lugar no espaço. Se aquela
sentinela não estava fisicamente ali, em que consistia aquele espectro?
Algo como a “alma” da máquina, assim como Neo conseguia ver
a “alma” de Smith, com óculos e tudo, no corpo de Bane?


Coerentemente, Neo, ao contrário do esperado pela platéia, não
busca salvar a humanidade da escravização das máquinas
ao final do filme. Ele vem para estabelecer uma paz, mesmo que temporária,
entre ambos. Neo salvou tanto as máquinas quanto os humanos do programa
Smith através de seu auto-sacrifício. Afirmar que o universo Matrix
equipara homens e maquinas chega a ser uma interpretação favorável,
já que a superioridade dessas últimas é defendida pelo
Smith e pelo Arquiteto.


A estética dos excluídos


Matrix faz amplo uso da estética dos excluídos e perseguidos.
Em Animatrix, as máquinas são perseguidas por humanos
malvados e se exilam. Em Matrix, o processo se inverte. Provavelmente
que em esse motivo que em Zion a população inteira, até
mesmo o conselho, veste-se em trapos como mendigos. Ora, uma sociedade capaz
de produzir enormes robôs e naves de combate não consegue fabricar
roupas limpas? Trata-se de um fashion statement.


Religião e Filosofia


Abundam em Matrix referencias religiosas de cristianismo, budismo, gnosticismo,
e muitas outras religiões. Mesmo usando simbologia religiosa, não
existe nenhuma forma real de transcendência em Matrix. Filosoficamente,
Matrix pega pesado no existencialismo e na busca de propósito, mas não
chega a explorar o tema ou à alguma conclusão. Toda o debate dos
personagens sobre livre arbítrio tornar-se estéril quando determinismo
impera. Existe também uma certa dose de niilismo descarado. Mas o ponto
principal é o aspecto desumanizante de Matrix. Os seres humanos não
são pouco melhores que máquinas ou programas de computador. Tornam-se
até objetos de uso destes.


O filme resolve-se com a paz entre humanos e máquinas, não com
a libertação humana de seus opressores. O arquiteto não
afirma que todos os seres humanos serão libertados, mas apenas aqueles
que desejam sair. Como esse desejo é condicionado à consciência
de que a Matrix existe, e esta consciência é restrita a uma minoria
que rejeita a programação, trata-se de fração restrita
da população. Aos poucos que vivem em Zion será permitido
co-existir pacificamente com as máquinas, vivendo embaixo da terra, com
toda a superfície da terra sob o poder das máquinas. Uma paz,
diga-se de passagem, de termos e duração desconhecidos. Aos outros,
resta a confortável escravidão.